sábado, 10 de novembro de 2012

A anarquia da solidão


Caos Ordenado
Por Eduardo Fernandes


   Semana passada, eu andava por Porto Alegre e, aos poucos, entrava naquele estado mental de estrangeiro culpando a cidade por suas expectativas frustradas. É um fenômeno que aparece em diversas músicas: “não existe amor na cidade x ou y, preciso de um lugar do caralho, vou me entorpecer bebendo vinho”. Pois bem, sou paulistano e estava na capital gaúcha, prestes a entrar nessa bolha de pensamentos que gira em torno da ideia de solidão.
   Você passa pelas ruas e vai criando o roteiro: essas garotas lindas, esguias e estilosas que ignoram a minha existência. Essas pessoas que conversam e — incrível — se entendem. Esses assuntos que não são os meus. Esses carros que atrapalham a minha passagem. Você monta o Lego com qualquer peça que estiver à mão. E pronto: o problema é a cidade, o ambiente urbano, os gaúchos etc.
   No fundo, você sabe que está imaginando besteiras. Sabe que está superdimensionando as coisas e conectando cabos que transmitem nada. Você finge que não, mas sabe que está completamente imerso na sua própria ficção. E o que os gaúchos, ou qualquer outro povo, têm a ver com isso? Nada. Que sorte, quando um poste compassivo se choca com sua testa para fazê-lo acordar por alguns instantes.
   Feliz ou infelizmente, nenhum deles apareceu no meu caminho. E isso acabou me dando a chance de perceber melhor que há vários tipos de solidão. Porque, não sei você, mas eu costumo ignorar a qualidade única e aguçada de sentir-se solitário. Tendo a pensar na solidão como um bloco único e coerente de irritação emocional.
   Mas há vários estilos de solidão. É como enfrentar uma tempestade. Algumas são violentas, e você quer se livrar logo delas. Mas também há tormentas calmas, agridoces, contemplativas. Certas turbulências são tão gentís, que há um certo prazer em passar por elas. Por vezes, até queremos permanecer naquela situação.
   Solidões são parecidas: há as agressivas, que causam repulsão imediata.    Porém, as mais perigosas são aquelas que são saborosas e convidam o solitário a pensar que é especial, diferente. É aí que ele começa a querer explicar o fenômeno, colocando a culpa nas cidades etc. E atira na vítima, tentando acertar o bandido.
   Não há uma explicação externa infalível para a solidão. Ela é uma denúncia (ou um eco) das nossas próprias expectativas. Portanto, não é a ausência de algo, como companhia, prioridades ou compreensão. É uma fotografia bastante clara de quão rígidos e impacientes podemos ser.
   Às vezes também funciona como aquele momento quando o Coyote vai cair no precipício, nos desenhos do Papa Léguas. A parte inferior do corpo cai e o pescoço se estica, mas a cabeça fica no alto. Coyote nos olha, num momento de total intimidade, e como que confessa: “meus planos me transformam num idiota, às vezes”.
   Como muitos de nós, Coyote sofre de visão curta. Microgerenciamento.  Nesse contexto fechado, nossos planos parecem tão lógicos. Nossos hábitos mentais parecem tão úteis. Mas a solidão surge como um elemento de caos, mostrando que algo ali não funciona. É preciso inserir uma perspectiva mais ampla (e incerta).
   Sentir-se solitário é um momento parecido com aquele em que o GPS recalcula a rota. Produz um minuto de silêncio, a expectativa do próximo passo. E agora? Quando a solidez dos nossos objetivos é muito grande, esse minuto de pausa parece uma eternidade.
   Assim, a solidão denuncia a fragilidade do controle. Mostra que, afinal, não queremos companhia, mas platéia. Não queremos contato, mas influência. Não queremos troca, mas entretenimento. E nem sempre há pessoas dispostas a entrar em nossas viagens de couch potatos existenciais.
   A boa notícia é que é possível sentir-se solitário a respeito de muitas coisas: gente, ideologias, perspectivas. O que significa que, em algum momento, seremos atropelados pela anarquia da solidão. E, então, ela poderá se tornar um sistema imunológico poderoso. Uma correção contínua de curso.
   Mas você sabe como funciona a mente, não é? Cedo ou tarde, vai querer botar cabresto na solidão. Vai tentar encaixá-la no comando central. E aí nos veremos tentando criar solidão, viver como solitários. Novamente, deve dar errado. Afinal, mesmo um eremita sabe que, com o tempo, até o ambiente se torna uma companhia — e que companhia.
   Assim, parece que a única saída é deixar a solidão surgir. No meio da cidade, da festa, da rede social, no quarto, no campo, onde quer que seja. E também deixá-la partir sem aviso, sem rastro. Por favor, sente-se, tome uma xícara de chá. Seja minha companhia por agora.